David Miller é irlandês e consultor empresarial. Morando no Brasil, desde o início da década de 60, desenvolve projetos de pesquisa, conservação e regeneração de Mata Atlântica Pluvial no estado do Rio de Janeiro, em Macaé de Cima. Este trecho é um dos mais importantes da remanescente Mata Atlântica Pluvial no estado, segundo as palavras de Gustavo Martinelli, coordenador do projeto Mata Atlântico, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no prefácio do primeiro livro de David denominado "Orquídeas do Alto da Serra da Mata Atlântica Pluvial do Sudeste do Brasil". 
 

Este livro, realizado em conjunto com Richard Warren e Isabel Moura Miller, foi fruto de um trabalho de pesquisa e levantamento realizado durante 16 anos e abrangeu 270 espécies com 66 gêneros de orquídeas com ocorrência acima de 1.000m altitude. Seu novo projeto é muito mais abrangente englobando a Serra dos Órgãos, desde o nível do mar e levou 6 anos para ser realizado, foram catalogadas mais de 600 espécies.
Seu interesse pela conservação das áreas de floresta primitiva é tão intenso que, junto com amigos, adquiriu grandes extensões de terra desta floresta primitiva com o objetivo de garantir a preservação permanente, criando mecanismos legais para que não esta mata possa ser vendida ou explorada.
Além disto, é escritor e acabou de lançar um livro, Um intruso no paraíso, com contos e crônicas.
Isabel Moura Miller é sua incansável companheira na realização destes projetos e se dedica à documentação fotográfica da biodiversidade da região com ênfase para as orquídeas.
Nesta entrevista, eles nos falam sobre seus projetos, sobre suas conclusões a respeito da regeneração das matas que deve ser natural.
As fotos dessa matéria são de Isabel Miller



  ON: David poderia nos contar um pouco de sua vida?
David: Eu sou irlandês, estudei numa escola em Londres, na Inglaterra e aos vinte anos, eu acho, emigrei para o Canadá, onde fiquei quatro anos. Adorei aquele país, aproveitei tudo que ele tem. Depois fui convidado para vir para o Rio de Janeiro para ajudar na abertura de um escritório canadense de consultoria e auditoria. Viajei o Brasil inteiro. Eu era encarregado de consultoria aqui no Rio, depois me enchi de instituições multinacionais e saí para ser "free lancer". Isto foi há uns 25 anos atrás, então estou 'free' lançando aqui desde aquele tempo.

ON: Como você começou a se interessar pelas orquídeas?

David: Com meus pais vivendo na África, fui criado na Irlanda por uma avó cujo hobby era orquídea, especificamente, o que descobri mais tarde, orquídeas brasileiras. Chegando aqui fui convidado, quase que imediatamente, por um amigo para ir a Nova Friburgo. Fiquei apaixonado pela mata, onde eu vi as orquídeas que minha avó tinha lá na Irlanda e decidi ficar aqui, naquele mesmo dia em 1962.

ON: Então você já tem mais de quarenta anos de Brasil. Como se deu o início do seu projeto de conservação e levantamento das orquídeas da região?

David: Comprei, em 1964, um sitiozinho em Nova Friburgo, em Mury. Depois, em 1968/69, com aquele milagre brasileiro a pleno vapor, apareceu muita gente, do tipo classe média, fazendo sitiozinho chamado "Chez Nous", "Aqui Fica", "Sítio dos Três Irmãos", 'Contos de Fada" por todo lado. Não agüentei mais isto e, em l970, comprei um outro sítio, que é bem grande, com uma enorme floresta que me fez começar a me interessar profundamente pelas orquídeas.
Depois de duas tentativas de casamento, encontrei Bel que se entusiasmou com o negócio de conservação e nos concentramos inteiramente na conservação e em orquídeas. Antes de disto porém, decidimos que, com tantas orquídeas, deveríamos fazer um livro sobre aquelas de Macaé de Cima e fizemos "Orquídeas do Alto da Serra da Mata Atlântica Pluvial do Sudeste do Brasil".
Este primeiro livro foi um sucesso, fizemos uma segunda edição e teria sido sucesso maior ainda, em termos de tiragem, mas a Salamandra não quis fazer uma terceira edição. Paciência...
Como estávamos na iminência de fazer um livro sobre a Serra dos Órgãos inteira, desde Tinguá até São Fidélis, deixei para lá imaginando que levaria apenas dois ou três anos. Levou seis anos. A coisa acabou sendo feita sem financiamento, entre bicos de consultoria.

ON: Sem nenhum subsídio para levar o projeto adiante?
David: Não recebemos nenhum subsídio.

  ON:Quem participou do primeiro projeto?
David: Fomos três pessoas envolvidas, além de mim, Isabel e meu amigo de infância, Richard Warren
 
David e Richard (nas extremidades) e um mateiro
Na Inglaterra, formamos um trust, Real Atlantic Florest Trust - RAFT e o usamos para tentar arrecadar fundos e organizar eco-turismo para cá. Na época da XV WOC, em l996, tivemos mais de 150 visitantes, entre os quais 70 australianos e foi a RAFT que organizou. Isto nos permitiu pesquisar o ano inteiro de 97. Depois destes orquidófilos, nenhum outro veio para o Brasil, num período de dois ou três anos. Nós também tivemos oportunidade de desenvolver um imenso projeto no Amapá, onde ficamos quase um ano.
Foi um estudo sobre Açaí.

  ON: Richard Warren foi um dos co-autores de seu primeiro livro, como foi sua participação na projeto?.
David: Ele é PhD em botânica e ajudou em termos técnicos, tendo ficado seis meses aqui. Ele tem um laboratório de propagação de orquídeas, exclusivamente espécies.

ON: Voltando ao seu projeto de conservação.
David: Adquirimos uma outra área na cabeceira do Rio das Flores, afluente do Rio Macaé, que é muito maior, muito mais "virgem", digamos assim. Nossa casa é a 1.500m de altitude, sendo que a média do sítio inteiro deve ficar em torno de 1.300m. Tem um outro sítio que Bel e eu compramos, em l983, e nossa casa fica a 1.100m.
É onde moramos, criando faisões e marrecos para fornecimento aos restaurantes.

ON: Como está sendo desenvolvido o seu projeto de preservação?
David: O primeiro sítio era interessante, mas como tinha 30% dele queimado, obviamente não se poderia fazer nada com isto. Começamos o estudo para descobrir qual a velocidade de regeneração, qual seria o melhor lugar, qual seria o mais difícil, etc.
A regeneração natural é a única maneira de regenerar as florestas e é barato. A única coisa que você tem que fazer é pegar arame farpado, cercar uma área e não permitir o acesso a qualquer quadrúpede - vaca, cabrito, cavalo - aí você tem uma regeneração natural rapidinha.

ON: Como foi a primeira experiência de re-introdução que vocês fizeram a com a Laelia crispa?
David: Isto foi em l983, quando um trabalho florestal resultou na derrubada de árvores carregadas de Laelia crispa. Nós coletamos as plantas e as transplantamos para locais diversos. Consideramos como objetivo principal induzir as plantas que estaríamos introduzindo a produzir sementes e seriam essas sementes, e as mudas resultantes, que estaríamos re-introduzindo ao invés das plantas-mãe reprodutoras.
As plantas prosperaram e isso nos levou a fazer uma operação de salvamento mais abrangente e coletamos cerca de 100 plantas de árvores que haviam sido derrubadas também.
Nos dois primeiros anos, nós polinizamos manualmente, mas nos anos subseqüentes não houve mais necessidade.

  ON: Esta região é relativamente bem conservada em termos de mata original, mas também possui áreas degradadas, não é?
David: Tem tantas áreas degradadas no estado do Rio, principalmente o anticlíneo do outro lado, por exemplo, Nova Friburgo, descendo até o rio Paraíba do Sul
  Esta área foi devastada pelo ciclo do café. Ainda hoje pode-se ver as marcas das plantações de café que eram feitas verticalmente nas encostas cuja principal razão era permitir que o capataz controlasse o trabalho dos escravos.
Com a eliminação das florestas, o húmus e a terra vegetal foram erodidos, tornando-a um semi-deserto, a terra não vale nada, é um pasto pobre, cheio de carrapato, verme. Metade do anticlíneo, de Trajano para lá, é um semi-deserto.
Não é por acaso que a densidade populacional é a menor do estado.
  Se você simplesmente cercar uma área, você vai ter uma regeneração natural em dois anos, já vai ter uma floresta de uma certa altura. Só não permitindo a entrada de animal, se começa a criar húmus, as árvores mais nobres podem entrar ou serem plantadas. As árvores nobres como cedro, canela, que têm seu sistema de raízes lateral não entram na terra como o eucalipto, o sistema de raízes é superficial, mas precisam de uma camada de húmus, de folhiço, de terra vegetal, com uma profundidade mínima de cerca de 50cm.
E esta profundidade leva 30 anos para ser atingida e não adianta tentar jogar húmus por cima porque a chuva vai carregar. O que segura tudo isto é o entrelaçamento das raízes capilares, ele é que retêm a água.
Descobrimos tudo isto ao longo destes 30 anos.
Sacamos que regenerar a face sul é mais fácil porque tem mais umidade já que o sol não a toca durante 6 meses do ano. Regenerar esta face é três vezes mais rápido do que regenerar a face norte, que é mais difícil porque fica queimada de sol o ano inteiro. A face oeste tem certas características, a face leste tem outras características. O grau de pluviosidade também tem influência.
Estudamos tudo isto em loco, observando e a descoberta das condições necessárias para as orquídeas foi muito fascinante. A gente descobre que só depois de um certo tempo, quando já existe uma certa profundidade na camada de húmus, permitindo que a umidade seja constante e se eleve até 2 ou 3 m altura, é que se começa a ver as bromélias e as pioneiras orquídeas entrando nesta floresta regenerada.
A interligação entre as três chaves, húmus, árvores pioneiras e bromélias é que levanta a umidade que permite que as plantas epífitas entrem nas partes mais altas. Se as orquídeas não estão lá, não há uma floresta saudável.
 
árvores pioneiras com quaresmeira
 

árvores pioneiras com unha de gato
 
árvores pioneiras
 

árvores pioneiras com fedegoso

  ON: As bromélias são as primeiras a chegar, antes das orquídeas?
David: As primeiras que chegam no chão. As cumeeiras são jardins puros de bromélias.
Durante a época de seca, fizemos um estudo de uma árvore grande que tinha caído, um araçá e tinham 250 bromélias de tamanho médio. Tinham outras, enormes, pequenas, mas pegamos uma meia dúzia das médias e descobrimos que, na roseta, elas carregam 2 litros de água. Com 250 na árvore, evidentemente você tinha 500 litros. Aí, se somarmos as outras epífitas, orquídeas, gesneriáceas, lírios, calcula-se que cada árvore destas tenha 700 litros de água suspensa. Projetando por hectare, tirando uma média de 30 árvores grandes por hectare, chega-se a 21.000 litros de água suspensa. Se você extrapolar isto para quilometragem quadrada do anticlíneo, de Paraíba do Sul até São Fidelis no norte, onde tinham as florestas ombrófilas mais densas, mais lindas, percebe-se que havia um mar suspenso, um lago suspenso, com pouca profundidade, que controlava o clima, controlava tudo e que permitia a exuberância da floresta.
Com a destruição provocada pelos barões do café, o mar virou sertão e isto foi a pior coisa que aconteceu.
Não foi a erosão ou o fim da floresta em si, foi o fato de se ter tirado aquilo que dava o clima, o que dava tudo, o mar suspenso.
O terreno tem que ser explorado em seções, ao invés de tirar tudo como eles fizeram.
Foi isto que descobrimos. Acho que ninguém nunca projetou a coisa assim. Quando você fica plantado em cima do troço por 30 anos, começa a sacar coisas.

ON: De uma certa forma vocês participaram do Programa Mata Atlântica, do Jardim Botânico.
David: Nós recebemos o pessoal do Jardim Botânico, por cinco ou seis anos, para a realização do Programa Mata Atlântica.
O projeto foi feito e é isto que é importante.
A base foi feita, dando uma imensa credibilidade para não se permitir loteamento naquela área. Conseguimos eliminar este tipo de coisa.
Eles fizeram o tombamento de todo tipo de árvore, de todo tipo de sub-bosque, o tipo de solo, mas eles não tiraram estas conclusões que estou colocando agora.

Isabel: O Jardim Botânico decidiu, isto foi muito importante, que nossa reserva, em Macaé de Cima, é o espelho para as outras áreas no estado.

David: Eles disseram que a terra vegetal na floresta original tem cerca de 30% de areia grossa, sem capacidade de reter água. O problema é que eles se esqueceram que não é a terra em si que segura, mas todas as raízes capilares se entrelaçando. A chave para conservar nossa água não é o fato do terreno ser argiloso ou arenoso, é este sistema radicular. Se você não tem umidade, você não tem um terreno útil.
A floresta não só segura a água aqui embaixo, como as bromélias seguram a água em cima. Eis a chave de nosso sistema neo-tropical. No livro, damos muita ênfase a isto e a introdução fala muito deste entrelaçamento. Isto não foi entendido, politicamente e socialmente e nossos rios são verdadeiras descargas de banheiro.

  ON: Isto é que dá equilíbrio.
David: Dá o equilíbrio e a sustentação do ecossistema.
Bel: Não é só às orquídeas, mas também aos animais...
David: Sim, ao ecossistema inteiro. As flores são as bandeiras que mostram. Se não tem orquídeas, a floresta não é suficientemente madura. Por exemplo, você não encontra orquídeas epífitas em capoeira. Descobrimos isto de uma maneira dura, quando começamos no anticlíneo procurando orquídeas, eu andei áreas grandes de floresta de capoeira, sem floresta original nenhuma, só aquelas árvores-relíquia que você encontra de vez em quando no meio pasto, imensas absolutamente cheia de bromélias, carregadas de orquídeas.
  Este Jequitibá rosa, por exemplo, cresceu assim por que não há quase nada ao redor.
Normalmente, ele cresce quase vertical na mata.
Por alguma razão, eles foram deixados.

ON: De repente até por uma razão prática, para deixar a sombra para o gado.


Jequitibá rosa
  David: Em muitas áreas você encontra ao redor da Casa Grande não só aquelas palmeiras imperiais imensas, cheias de orquídeas, mas também árvores muito bonitas, verdadeiras relíquias. Evidentemente, quando você está escrevendo sobre os efeitos dos barões do café, junto com nossa experiência de trinta anos de regeneração, você começa a sacar com muito mais profundidade os efeitos terminais, vamos dizer.
O anticlíneo é realmente, como uma pessoa que escreveu sobre a guerra atômica, um mundo de formiga e capim, realmente parece que houve uma guerra nuclear. Eu martelo no sentido de se ter florestas nativas em nosso clima.